Morto aos 76 anos, ex-deputado Caó marcou na Constituição sua luta antirracista

Ele se dedicou a promover a democracia, levando em conta a situação da população negra no país.

Isabela Vieira - Repórter da Agência Brasil
Publicada em 06 de fevereiro de 2018 às 12:51
Morto aos 76 anos, ex-deputado Caó marcou na Constituição sua luta antirracista

Carlos Alberto Caó incluiu o racismo entre os crimes inafiançáveis quando foi deputado constituinte.Reprodução TV Brasil

Há 30 anos, o jornalista e advogado baiano Carlos Alberto Caó de Oliveira inscrevia na história brasileira as bases para o combate ao racismo e à discriminação racial. Ele se dedicou a promover a democracia, levando em conta a situação da população negra no país. Falecido ontem (4), aos 76 anos, é lembrado como ícone da luta antirracista por ter incluído na Constituição de 1988 o racismo como crime inafiançável e imprescritível e por, no ano seguinte, ter aprovado a Lei 7.716, que ficou conhecida como Lei Caó, em sua homenagem.

A lei tornou crimes a discriminação racial e as diversas formas de preconceito, com penas de prisão que hoje variam de dois a cinco anos, além de multa. Antes, vigorou por 30 anos, a Lei Afonso Arinos, de 1951, pouco efetiva, por não prever punição a esses crimes.

No Congresso Nacional, os debates e as mobilizações para a aprovação das matérias não foram fáceis. A jornalista Norma Nery, à época, correspondente do jornal Zero Hora, em Brasília, conta que, durante a Assembleia Constituinte, testemunhou o empenho do deputado em convencer os colegas. “Tivemos uma convivência estreita e lembro que Caó enfrentou muita dificuldade para aprovar aquela emenda e depois a lei”, recorda. “Ele ia atrás de um por um. O deputado ia para comissão, ele ia atrás, contava os votos. Teve todo um trâmite porque havia muita resistência, ninguém acreditava em racismo, houve um duro trabalho de convencimento”.

No próprio discurso, no dia de aprovação da emenda, por 521 votos a favor e três contrários, em 2 de fevereiro de 1888, Caó convocou parlamentares a construir uma democracia em que a população negra estivesse representada, depois de três séculos de escravidão.

“É indispensável que tenhamos em conta de que a construção do Estado Democrático se inicia pela superação das discriminações raciais, pela superação dessa tentativa de classificar o homem pela cor da pele no mercado de trabalho”, declarou, na tribuna, ao então deputado Ulysses Guimarães. E desafiou os parlamentares a enfrentarem o status quo. “Em nome desta nação dinâmica, heterogênea, pluricultural e plurirracial, peço aos senhores e a este plenário, onde a nação brasileira está desigualmente representada, que fujamos aos apelos, às pressões e à coerção que o Estado patrimonial brasileiro tem feito sobre a Nação”.

A deputada federal Benedita da Silva (PT), que junto com Carlos Alberto divide a autoria e a mobilização em favor da Lei Caó, conta que o ex-deputado se parecia com o ativista e ex-senador Abdias Nascimento, também do PDT, incansável na defesa da população negra brasileira. “Ele era um homem muito inteligente, gozador, vivia puxando aquela barbicha, tinha posturas duras, como Abdias, mas, sobretudo, foi uma pessoa comprometida com a luta do movimento negro, em defesa da liberdade de imprensa e dos direitos dos trabalhadores”, lembra.

Ela ainda dividiu atuação com ele em outros momentos históricos, como a defesa dos direitos da população quilombola, e também do rompimento das relações entre Brasil e África do Sul, na época em que vigorava o apartheid (regime que separava brancos e negros) e Nelson Mandela estava preso.

Muito antes de propor a emenda na Constituinte e a lei que recebeu seu nome, Caó foi influenciado pelas discussões sobre a questão racial dentro de sindicatos e partidos políticos, lembra a pesquisadora Elisa Larkin, diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro). “Antes, a esquerda, em sua grande maioria, inclusive, os sindicatos, afirmavam que a questão não era racial, era social, econômica, de classe, e que esse debate dividia a classe operária”.

A autuação de Caó, no entanto, se tornou “um divisor de águas”, explica, a partir da compreensão de que, sem levar em conta o racismo, uma boa parte da população ficava para trás. “Quando eu conheci Caó, ele tinha acabado de se convencer disso e levou a discussão para as entidades de direitos humanos pelas quais transitava”. Naquela época, o PDT foi um dos primeiros partidos políticos a compreender a importância do tema e elegeu Caó por dois mandatos.

Antes de chegar ao Congresso Nacional, Caó teve uma carreia brilhante pelos mais prestigiados jornais da época, chegando ao cargo de editor de economia do Jornal do Brasil. “Lembro-me dele também como um dos primeiros jornalistas negros na televisão brasileira, na época, na TV Tupi, como comentarista de economia, conceituadíssimo”, recordou Nery.

Nessa época, entre 1970 e 1980, assumiu ainda a presidência do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, por duas vezes, para onde levou o debate sobre a discriminação no mercado de trabalho, tema discutido até hoje pela entidade. Paralelamente, participou das articulações que deram origem à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Caó foi ativista desde jovem e, ainda na Bahia, chegou a assumir a vice-presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE), antes de combater a ditadura e ser perseguido.

Desde a Lei Caó, apesar de entraves, o país tem avançado para punir a injúria racial e acabar com o racismo institucional, acrescentou o advogado Humberto Adami, presidente da Comissão da Verdade da Escravidão Negra, da Ordem dos Advogados do Brasil e ex-ouvidor da Secretaria Nacional de Políticas de Igualdade Racial. Um exemplo, citou, é o Estatuto da Igualdade Racial, de 2010, do senador Paulo Paim (PT), também ex-deputado constituinte.

As causas da morte de Caó não foram divulgadas e a família optou por uma cerimônia de despedida discreta, sem informar local e horário do velório e do enterro ocorridos hoje (5).

Winz

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